quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Introdução ao texto "A Estação"

Este conto, ou romance começou a ser escrito no verão de 2008, por mim e por uma amiga, Maria João.

Cada um escrevia algumas linhas ou parágrafos e depois passava ao outro... a coisa fluiu bem durante alguns meses, mas por variadas razões e limitações de tempo, fomos descurando a sua continuação.

Decidi(mos) agora colocá-lo em blog, permitindo-lhe adquirir vida própria e assim, quiçá encontrar-lhe um rumo...

A Estação

A velha estação de comboio já quase desactivada adquiria naquela manhã a cumplicidade de um amigo que nos oferece o ombro quando tudo o resto parece ter-se desvanecido; até os latidos distantes de um cão me serviam de refúgio para escapar da sensação de solidão que aos poucos se ia instalando. Não que essa solidão se devesse ao facto de estar ali sozinho, naquele ermo deserto; era antes uma solidão mais profunda, como aquela que por vezes experimentamos mesmo estando no meio de uma multidão. Uma sensação que vacila entre a vontade de querer abraçar o mundo e a urgente necessidade de que alguém nos abrace a nós.
Paulatinamente, fui olhando em redor, tentando reconhecer um objecto, um canto, um degrau, algo que me reavivasse memórias há muito esquecidas. Mas nada. Todas as pinceladas do cenário que me rodeava me pareciam hostis, peças dum puzzle onde nunca me teria encaixado. Demorei-me a observar os velhos azulejos azuis e brancos, cujas cores desgastadas pela acção da natureza revelavam a idade avançada que teriam. Mas nem isso. Foi então que decidi. Haveria de conseguir enfrentar aquele momento, e os que se lhe seguiriam. Peguei nas malas empoeiradas, vacilei com o peso, endireitei-me e aproximei-me do átrio da estação. Nem vivalma. Seria de imaginar que uma estação de comboios tivesse as pessoas do costume. Olhos ansiosos, esperando reencontros há muito imaginados, olhos desolados, marejados de lágrimas, receando o desfecho de separações anunciadas, o corre-corre dos passageiros. Mas nada. Ninguém. Nem sequer o guarda da estação, o cobrador, ou a senhora da limpeza.
Será que tudo não teria sido um equívoco? Ou ter-me-ia enganado, no lugar, no dia? Acabei por decidir sentar-me no canto mais afastado de um velho banco corrido encostado a uma das paredes do edifício; precisamente no canto mais empoeirado e onde a luz difusa havia reservado com carácter de eternidade uma zona de quase sombra, ideal para quem quisesse passar despercebido. Quanto tempo teria mais de esperar?
Talvez pela demora da espera, ou por puro cansaço acumulado, apenas acordei quando ela estava de pé, bem à minha frente (há quanto tempo ali estaria tão silenciosa, pensei).
A mulher não demonstrava qualquer tipo de emoção especial, teria perto de 40, o cabelo apanhado atrás da cabeça, deixava toda a face a descoberto e, mesmo sob a pouca claridade, podia facilmente constatar-se uma serena beleza, ainda que um olhar mais cuidado mostrasse também que uma vida árdua esculpira a sua marca através de rugas na testa e nos cantos dos olhos. Vestia uma blusa leve florida sem ser vistosa por debaixo de um casaco de malha de um tom escuro, talvez azul ultramarino; uma saia pregada também azul até abaixo dos joelhos; por baixo cintilava o brilho suave de uns collants incolores numas pernas que calçavam botas de cano alto e salto raso; a sobriedade personificada, dir-se-ia.
- Sr. Teixeira? – perguntou, com aspereza na voz.
- Sim, peço perdão, acabei por adormecer. – não tive sequer coragem de referir a demora.
- Vamos? - perguntou ela – Traz pouca bagagem, pensa demorar pouco tempo!?
- Eu...
Esta conclusão pareceu ter um efeito ainda mais acentuado e negativo nos modos da mulher, que estacou o passo em direcção a um velho carro estacionado ao fundo de uma pequena rua inclinada que desembocava na praça da estação de comboios.
O trajecto foi quase totalmente feito em estradas de macadame e no mais profundo silêncio, o rodado do carro fazia levantar o pó do chão o que dificultava a visão de tudo o que ia ficando para trás; todas as dúvidas e perguntas que me assaltavam, desejosas de resposta, teriam de ficar para depois… Esta estada prometia ser dura de roer. Mas agora, pelo menos, conseguia perceber por que razão ela tinha ficado sentida pela perspectiva de eu pensar ficar pouco tempo, isso seria prenúncio de uma morte anunciada. Raios! Tu e a tua falta de tacto! Idiota! – pensei.
Mas, na verdade, nem eu próprio sabia o que o futuro imediato me reservava. A dureza da paisagem, a rudeza da situação, tudo se enquadrava na imagem que antevia. Aquela mulher, empedernida pelo ambiente onde se movimentava, era apenas mais um sinal do ambiente que iria encontrar. Imaginava o meu pai, esquálido, comido pela doença, acamado, num quarto sombrio e frio, rodeado apenas dos medicamentos que forçava, garganta abaixo, às horas certas, pela mão da mulher que se encontrava ao volante, muda, de olhos fixos na estrada.
Os restantes quartos, outrora cheios de luz e de risos, imaginava-os fechados, sombrios, com pinturas desgastadas e bocados de caliça amontoados nos cantos escurecidos pela humidade acumulada. E a imagem que teimava em surgir, em cada recanto da casa, com um sorriso bondoso e sereno, era a da minha mãe. Voltar àquela casa trazia-me a lembrança que me esforçava há tanto tempo por esquecer. Todos os recantos da casa tinham um toque que denunciava a presença da minha mãe. Lembrei-me da colcha do meu quarto, que a minha mãe comprara na feira, um dia, em que me levara pela mão.
- Gostas, querido? Era esta que gostavas de ter?
E, sem acreditar que iria ter aquele pedaço de luz e cor a iluminar o meu quarto sombrio, com uma decoração antiquada, com naperons e bonecos de chumbo antigos em prateleiras, onde raramente era permitido tocar, retorqui, inocente:
- Ai, mãe. Eu adorava. É para mim?! – os meus olhos brilharam e a minha cara iluminou-se. De tal modo que a minha mãe não resistiu. Apesar de, ao que penso, isso obrigar à renúncia de algumas despesas mensais, digo penso, pois nunca mo disse, aliás naquela casa raramente se falava em dinheiro, assunto quase proibido. Decidiu comprar-ma. Recordo-me de entrar na aldeia, ufano, de embrulho na mão, desejoso de que me perguntassem o que transportava.
Claro que estes e outros tantos episódios estavam gravados nas minhas memórias, faziam parte das minhas recordações. Mas esta, como tantas outras, era uma recordação alegre, colorida, feliz. Agora iria ter de enfrentar uma casa desgastada pelos anos e a ausência duma pessoa muito doce, que a todos esforçava por agradar, e que tornava a vivência naquela aldeia um prazer antecipado, uma partilha.
Voltei a endireitar-me, pela vigésima vez, para fazer face aos solavancos da estrada que, ao invés de melhorarem, eram cada vez mais acentuados. Tive de admirar a destreza da condutora, por evitar buracos que se assemelhavam a verdadeiras crateras. No entanto, o pó que nos rodeava e que quase nos isolava, foi-se esfumando, dando lugar a uma paisagem, tenho de reconhecer, deslumbrante. A imponência das montanhas sempre teve em mim um efeito rejuvenescedor; as montanhas possuíam o dom de me fazer reviver os bons momentos do passado, aqueles que melhores recordações deixam em nós. Recordei os longos passeios pelos bosques e as vigílias deitado no cimo de uma grande fraga arredondada, até altas horas contando estrelas, imaginando viajantes do cosmos que, lá do alto reparavam em mim, só em mim, e acenavam amistosos. As temerárias explorações a todas as cavidades abertas nas rochas ou no solo, apenas possíveis a um corpo franzino como o meu levavam-me a passar horas no confortável isolamento destes espaços que a natureza esculpia caprichosamente; ocasionalmente com a companhia fugaz dos que habitavam estes buracos: salamandras, osgas e pequenos lagartos. Eram locais só meus, pelo menos enquanto lá permanecia. Locais de sonho e de paz, apenas quebrados pelos gritos que por vezes dava, tentando contar os ecos que se repetiam. A infância é rica em recordações, tomara fossem todas tão felizes.
A súbita paragem do automóvel fez-me regressar à realidade actual, havíamos chegado ao nosso destino. Uma casa rústica de dois pisos, quase toda envolta em folhagem de hera até ao telhado, e telhas recobertas de musgo, onde apenas se recortavam as janelas; não fora isso e seria fácil avaliar há quanto tempo necessitava de uma boa pintura, houvesse vontade e mãos para a fazerem. A casa ficava um pouco afastada da pequena aldeia, no sopé da montanha, e o facto do sol estar a pôr-se por detrás dela, acelerava o escurecer, mais rápido do que em outras paragens, que não partilhavam desta vizinhança.
A aldeia revelava uma acentuada desertificação, à medida que os poucos idosos que ainda a habitavam iam morrendo. Um deles é o que resta do meu pai, Raimundo Teixeira, e o simples pronunciar do seu nome deixa-me um sabor acre na boca e uma sensação de desconforto.
Retirei ambas as malas do porta-bagagem do carro e entrei na casa pela porta que a mulher deixou aberta. Havia no ar uma mistura de cheiros, entre o mofo, papéis velhos e remédios, mas também um doce aroma a flores silvestres, sem dúvida pela presença feminina. A medo, acerquei-me logo do quarto que sempre conheci como ‘o quarto dos pais’, aquele lugar envolto nalgum mistério onde eu e os meus irmãos não ousávamos penetrar em crianças. Era aquele o reino do meu pai, inviolável, e inacessível, o que naturalmente só nos aguçava a curiosidade. A minha mãe entrava e saía do quarto com a desenvoltura e a naturalidade a que lhe obrigavam os afazeres domésticos. Nós, sempre curiosos, não perdíamos uma oportunidade de espreitar, quando apanhávamos a porta entreaberta, cientes de que não poderíamos entrar, pois arriscávamo-nos a enfrentar a face áspera e a voz alterada do meu pai:
- Não vos avisei já que não podiam entrar aqui?! Já lá para fora!
Enquanto recordava aquela figura enorme, um gigante nas minhas memórias de menino, que impunha a sua vontade e a sua presença naquela casa, à qual tanto a minha mãe, a minha avó, e as crianças se submetiam docilmente, sem nunca a questionarem, fui entrando, receando o cenário que iria ter de enfrentar, que tanto contrariava uma imagem construída ao longo dos anos de convivência conjunta.
Sob um par de mantas pesadas, velhas e algo encardidas, consegui vislumbrar um rosto vagamente familiar. A face, outrora cheia e carnuda, a tez brilhante e uma barba preta, escanhoada, tinha dado lugar a um rosto amarelecido, olhos encovados e ao desenho marcado dos maxilares, sob uma barba de vários dias, quase totalmente branca. Entrei naquele quarto, com todas as emoções estampadas no rosto, que nem me lembrei de tentar disfarçar. Aproximei-me da cama e o ruído do soalho sob os meus pés fê-lo virar a cabeça em direcção ao som, certo de que se aproximava mais uma toma da medicação. Olhou-me e, por instantes, iria jurar que não me reconhecera. Tinha um olhar vago, quase ausente. Lentamente, a sua expressão alterou-se, e percebi que começava a reconhecer-me. Assisti à transformação daquele rosto, os olhos ganharam brilho e consegui ver um sorriso, associado a alguma dor.
- Meu filho! – a sua alegria tocava a comoção.
Eu fiquei ali, a olhar para ele, tentando sorrir, mas incapaz de dizer fosse o que fosse. O quadro era dramático, pior do que havia antecipado. Não fazia ideia que a doença lhe tivesse carcomido os ossos e a vontade de viver àquele ponto. Esforcei-me, genuinamente, por não deixar transparecer tudo o que me perpassava a mente, e consegui dizer:
- Ó, pai! Então? Como vai isso?
- O que achas? Estou p'ra aqui… Para morrer!
- Ó pai, não diga isso. Ainda nos vai enterrar a todos, se Deus quiser. Conte-me lá, tem sido bem tratado?
Ele relançou lentamente o olhar pelo quarto em busca da presença da enfermeira, a sua única companhia nos últimos tempos. Talvez pelo facto dela não estar, finalmente respondeu:
- Se achares que cuidar de um homem crescido como se de um pirralho se tratasse, é ser bem tratado... Essa megera faz-me pior do que as maleitas, que o diabo a carregue!
Fiquei com a firme certeza de que a resposta teria sido diferente caso ela estivesse presente naquele momento, pois conhecia demasiado bem a capacidade inata do meu pai para torcer e distorcer as situações consoante mais lhe interessasse. E constatei-o pouco depois, quando a enfermeira entrou no quarto, trazendo nas mãos uma bandeja com um copo de água e alguns comprimidos.
- Pois é como te digo... tem sido um verdadeiro anjo-da-guarda para mim, sempre atenta às minhas necessidades.
Por um breve instante pareceu-me perceber desdém no olhar dela. Aparentemente não era apenas eu que conhecia as artimanhas do meu pai. Ele tomou os medicamentos no meio de uma lamúria qualquer balbuciada entre dentes; de seguida a enfermeira voltou a deixar-nos a sós.
- Bem, agora que aqui estou, espero vê-lo brevemente de pé ao meu lado a percorrer os caminhos da serra.
- Hum... acho que vais ter de convidar outra pessoa para esse passeio, pelo sim pelo não. Mas conta-me coisas de ti, já que eu, como vês, pouco tenho para contar.
Ficámos mais um pouco a conversar, ou a tentar entabular uma conversa, com prolongadas pausas de parte a parte... até que o efeito das drogas o venceu e se deixou adormecer. Finalmente, levei as malas para o meu quarto, o mesmo onde passei a minha infância e parte da juventude, sentei-me sobre a cama e deixei que toda a tensão e cansaço daquele dia caíssem sobre mim, deitei-me para trás e fixei o olhar num velho cartaz na parede, com as cores comidas pelo sol, onde se anunciava um concerto de música rock... uma das muitas recordações que aquele quarto conservava. Alguns dos músicos tinham ganho longos bigodes a esferográfica, com os cumprimentos da casa.
Daí a algum tempo a enfermeira fez-se anunciar com um toque de dedos sobre o painel da porta.
– Não temos cozinheira para fazer jantar, ela apenas vem ao almoço, mas se quiser uma sopa quente e pão com queijo da serra ou enchidos eu posso preparar-lhe, está com cara de quem precisa.
- Obrigado, desço daqui a pouco. Preciso apenas de um duche rápido.
O duche soube-me bem. A água quente teve o condão de me relaxar ligeiramente. Saí do banho mais retemperado, um pouco mais animado até. Tentava sentir-me em casa, pôr-me à vontade, mas o facto é que era muito difícil. Parecia-me que estava numa casa estranha, numa outra realidade. A longa e permanente ausência das coisas, lembra a ausência de afecto. Quando regressamos, pouco temos para partilhar. Assim era. Aqueles objectos inanimados, outrora tão significativos para qualquer jovem, pareciam-me desprovidos de valor, de história. Ou seria apenas eu? Seria eu que estaria a prever e antecipar o desfecho que se avizinhava a passos largos? O meu pai não duraria muito e, juntamente com a minha irmã, iríamos ter de vender aquela casa. A minha irmã, que tanto gostava dela, não iria poder gozá-la, coitada. A minha mãe, outrora a alma daquela casa, acabou por não poder desfrutá-la como gostaria. Na altura em que se preparava para finalmente deixar a azáfama citadina, foi vencida pela doença do século XX. Um cancro (a tal ‘doença prolongada’ de que tanto falam na televisão sempre que referem alguma vítima desta malfadada maleita) privou-nos cedo de mais da sua companhia. A sua ausência doía enquanto recordava cada canto, cada degrau, cada móvel, ciente que tudo ali tinha sido colocado com o seu esforço incansável, com a dedicação de quem investe uma vida inteira tentando disponibilizar aos seus o conforto dum lar. Pensando bem, o facto dela ter falecido antes do meu pai poupava-a a este drama que ela iria certamente acompanhar, condoída. Pelo menos por isso, ainda bem que cá não estava.
Mas nem eu nem a minha irmã poderíamos manter uma casa tão afastada das nossas vidas diárias, e creio que nenhum dos descendentes estaria interessado em vir para tão longe, para este lugar inóspito, que nada lhes dizia. Teríamos, definitivamente, de a vender. Talvez por isso também, todos aqueles objectos começavam a nada me dizer. Talvez não me quisesse afeiçoar a eles novamente, para ter de me separar deles definitivamente. Não sei. Poderia ser.
De repente, apercebi-me de que estava com fome. Rapidamente vesti uma roupa confortável, uns jeans e um camisolão, que as noites na serra em nada se comparavam às noites lisboetas, e desci para jantar.
Encontrei na cozinha uma mesa posta com uma tigela de sopa de feijão encarnado e hortaliças ainda fumegante, ao lado de várias fatias de pão caseiro cozido nessa tarde, chouriço, presunto e um queijo da serra a prolongar-se prato fora. Sim, estas eram recordações que não me importava nada de manter. Tomei sozinho a minha refeição improvisada, apenas com a fugaz companhia do roçagar nas minhas pernas de um gato que sorrateiramente entrara por uma janela entreaberta, provavelmente atraído pelo cheiro da comida. Enquanto comia, entretive-me a remexer nalguma correspondência esquecida em cima da mesa, contas para pagar e outras cartas, nem todas dirigidas ao meu pai.
Após uma chávena de café, saí para a fria aragem do anoitecer e vagueei por algum tempos nas desertas ruas da aldeia, apenas saudado aqui e ali por caras conhecidas de há muito tempo, que me viam passar por dentro de suas casas, pois a notícia da minha chegada tinha corrido célere. Uma neblina começava a pairar, vinda do bosque e dos montes com cheiros húmidos de feno e alecrim. Chegado ao cimo de uma rua que se afastava da aldeia na direcção dos montes, parei, virei-me e fiquei por alguns minutos a olhar as luzes nas janelas das casas que pouco a pouco se iluminavam; quais candeias na noite, tentando superar qualquer dificuldade em encontrar o caminho de regresso. Como era possível este punhado de casas, que se percorria em poucas passadas, sobreviver por tanto tempo e exercer em mim um tal sortilégio? Mesmo após um afastamento de décadas, bastava o simples regresso para que imaginárias raízes saíssem do solo e nos tentassem manter ali, para sempre?
Pudesse tudo ser diferente e esta luta que se travava no meu espírito não teria sequer razão de ser. Pudesse eu largar tudo, a minha casa e o meu emprego na cidade e de bom grado aceitaria que essas raízes cumprissem o seu desígnio, tentaria até convencer os miúdos a visitarem-me de quando em vez... a virem conhecer a natureza fora do ecrã de televisão ou do monitor do computador.
Dadas as circunstâncias actuais, nem precisaria de me confrontar nem ao meu pai com os motivos do nosso afastamento, pois dentro de pouco tempo a casa ficaria vazia. Mas o pior, seria viver ali com todas as memórias que a enchiam. As minhas memórias, mas também aquelas que herdei da minha mãe, da minha irmã e de tantas outras pessoas que comigo partilharam aquela casa.
Quando a humidade gelada começou a penetrar-me o corpo, tomei o caminho de volta, já com um nevoeiro cerrado ao nível do chão, o que fazia com que os meus passos ecoassem no empedrado.
Ao entrar em casa fui encontrar Eugénia sentada em frente à lareira da sala, onde crepitava um fogo reconfortante. Ela remendava alguns pares de meias e escutava música de um velho rádio, pareceu-me um qualquer êxito pop com alguns anos...
- Não devia andar lá fora com esta humidade, sente-se aí um pouco e aqueça-se.
- Obrigado, Dona Eugénia! Queria aproveitar esta oportunidade para lhe agradecer tudo o que tem feito pelo meu pai. Se não fosse a senhora, não sei como seria.
- Teriam de encontrar outra pessoa para o meu lugar.
- Sim, claro. Mas não seria fácil. A sua reputação de eficiência e de pessoa extremosa não é fácil de igualar. Além disso, já conhecia o meu pai há muitos anos. Depositávamos toda a confiança em si, tanto eu como a minha irmã. Por tudo isso, volto a dizer, só tenho que agradecer. Mas conte-me, ele tem sido muito difícil? Há muito tempo que não falamos pessoalmente. Os contactos breves telefónicos não nos dão tempo para conversas mais alongadas.
Apercebi-me que a face dela se alterou quando lhe perguntei se o meu pai tinha sido difícil. Imagino que seja um doente muito, mas muito difícil de acompanhar, de satisfazer e até de tratar. Habituado a fazer o que queria, a pôr e dispor das coisas, ter de se sujeitar a uma... nem sei como lhe chamar… uma acompanhante, que tudo lhe dita, desde a hora das refeições até à hora da higiene pessoal é um desfecho muito duro para um homem inquebrantável como o meu pai. Surpreendentemente, a resposta veio:
- Não mais difícil do que todos os doentes na condição dele, coitado. Não é fácil ver-se agarrado a uma cama.
Aquela resposta apanhou-me totalmente de surpresa. Estava à espera duma longa lista de lamúrias, de queixas fundamentadas sobre o péssimo feitio que tinha, do despotismo que exibia, da falta de reconhecimento, do… Sei lá eu. Olhei para a D. Eugénia com um misto de perplexidade e desconfiança. Pensei: Está a fazer cerimónia comigo. Como somos nós a pagar-lhe….
Decidi pô-la à vontade:
- Eu conheço bem o meu pai, D. Eugénia. Não precisa de se conter. Sei que é uma pessoa muito difícil de acompanhar, por vezes quase intratável.
Ela olhou-me com um ar genuinamente incrédulo. Foi então que percebi que estava a ser totalmente honesta. Ora, se estaria a ser honesta, estava, com certeza a condenar-me pela atrocidade que teria dito. Não sabia mais o que pensar. Se ela estava a ser genuína, seria eu que estava a ser injusto? Seria eu o intratável? As minhas críticas recairiam sobre mim? – Francamente – reforçou – o seu pai é um doente igual a tantos outros. Não posso dizer que seja excepcionalmente difícil. Não é fácil estar acamado e ter de se sujeitar a uma vida imposta por terceiros, sobretudo estranhos, com quem nunca tinha convivido mais intimamente (tive dúvidas se aquela afirmação seria uma crítica velada ao nosso comportamento familiar, mas não interrompi), mas o seu pai sempre se revelou educado, nunca se mostrou excessivamente difícil para fazer o que fosse e, tanto quanto pode, coitado, sempre colaborou comigo. Por isso lhe digo, não posso concordar menos com essa afirmação.
Aquela declaração tomou-me completamente de surpresa. Uma onda de sentimentos perpassou-me a mente e as memórias. Conheceria o meu pai assim tão bem quanto pensava?... Conhecer-me-ia a mim próprio assim tão bem?...
Não era uma novidade para mim, esta tendência de me questionar; sempre tive uma forte necessidade de aceitação, de saber as expectativas que os outros tinham em relação a mim, de me sentir desejado, de querer desmentir que, de facto, podemos agradar a gregos e troianos. E agora de novo, e completamente de surpresa, esta mulher provocava-me um turbilhão de dúvidas e perguntas.
Durante uma série de anos, preferi afastar-me das minhas diferenças com o meu pai... preferi-o em vez de as tentar enfrentar e resolver, mas agora, quando talvez não houvesse já tempo para remediar o erro, uma completa desconhecida lançava-me isso à cara, mesmo que inconscientemente. E isso era algo que não estava certo. Não sabia tudo aquilo que o meu pai lhe poderia ter contado sobre mim, em todo o tempo que tinham passado juntos.
Devo ter estar vários minutos nestas cogitações, mas durante todo esse tempo Eugénia permaneceu calada, ocupada com os seus afazeres, talvez a gozar os efeitos da sua resposta.
Decidi então protelar todo aquele momento de introspecção que se adivinhava e aceitar a verdade daquela senhora. Era a verdade dela, sem dúvida, que em nada se assemelhava à minha, mas isso seriam outras conversas. Iria deixar isso para depois. Decidi passar aos problemas práticos, ao que me tinha levado até ali, de tão longe, e que me tinha feito deixar a família em casa, lá por Lisboa, cada um preocupado com os seus próprios afazeres. A minha mulher ainda se tinha proposto a vir comigo, mas, sinceramente, percebi que se tinha limitado a ser gentil. Vir até aquele ermo era, no mínimo, extremamente inconveniente, pois teria de pedir uma licença no trabalho por um tempo indeterminado, o que agora, em altura de exames, seria muito difícil de obter. Claro que recusei a oferta e decidi enfrentar aquele destino que era o meu. Retorqui então:
- E agora, que estamos aqui os dois, diga-me lá com mais pormenor. O que disse o médico?
Ela levantou os olhos do trabalho que tinha nas mãos, levantou-se e fechou a porta, muito silenciosamente.
- É sempre melhor. Não vá ele ouvir, coitado. Nunca sei até que ponto ele pode ouvir o que se passa cá em baixo, portanto o melhor é sempre fechar a porta.
Enalteci o cuidado e a atenção daquela senhora. Tal nem me tinha sequer perpassado a mente. Comecei a perceber que o meu sentimento de culpa tinha tendência a aumentar à medida que o tempo passava. A D. Eugénia, entretanto, abeirou-se duma escrivaninha antiga, na sala, abriu-a e, do seu interior abriu uma das pequenas gavetas laterais, donde retirou uns papéis dobrados. Um envelope, alguns papéis avulsos e entregou-mos.
- Este é o relatório das análises. Está aí tudo. Veja lá o senhor.
Perscrutei os papéis. Uns envelopes maiores, outros mais pequenos. Apercebi-me de que as análises antigas estavam misturadas com as mais recentes. Olhei para o envelope da frente. A data era recente. Vinte e sete do dez de 2003. Era aquele. Abri-o, a medo, mas determinado. Percebi inicialmente tratar-se dum hemograma. Os valores, ao que percebi, estavam muito alterados, quando comparados com os valores de referência que se encontravam impressos no papel do laboratório. Na folha seguinte encontravam-se as análises à urina. Urina Tipo II. Não gostei. Vi escrito “bastantes vestígios de sangue” na urina. Ora, aquilo teriam de ser más notícias. Mais uma página e mais valores, muitos valores, a maior parte dos nomes não me eram totalmente desconhecidos, mas, sinceramente, não sabia bem o que quereriam dizer. E mais nada. Não havia um relatório médico a interpretar tudo aquilo. Os meus conhecimentos médicos não me permitiam fazer uma análise correcta do que acabara de ver. Coloquei as folhas dentro do envelope e abri outro, de papel pardo, contendo umas radiografias e outro envelope já aberto. Constatei que as radiografias eram da região torácica. Dos pulmões, portanto. Olhei-as e só vi manchas. Muitas manchas, umas mais escuras do que outras, o que não me adiantou muito em termos de informação. Decidi então abrir o outro envelope. Relatório medico do “Raio X” de 27 de Outubro de 2003. Seria o mais recente, pensei. “Varias metástases espalhadas pela zona pulmonar, impedindo um correcto funcionamento da função respiratória.” E mais uma série de termos algo ininteligíveis. Aquilo eu retive. Ou seja, a coisa era muito grave. Mais até do que antecipara. Apesar daquele telefonema súbito e da ida repentina ate Bragança convenci-me que a doença poderia ter evoluído um pouco, o que os teria assustado, mas não estava preparado para aquilo. Pelo que conseguia perceber estaria para breve uma falência dum órgão vital do corpo do meu pai, o que precipitaria a sua morte.
Não sabia muito bem o que dizer. Antecipava que o médico tinha dito exactamente o que acabava de constatar. Perguntei então:
- E o médico, o que disse?
Olhei para a Dona Eugénia, agora com um olhar grave e perturbado.
- O médico disse que a doença evoluiu muito em pouco tempo e que ele acha que não há nada a fazer, senhor. Agora só poderiam dar-lhe medicamentos para as dores. Ele disse-me que não havia esperança. Foi por isso que decidi telefonar-lhe.
- Fez muito bem, D. Eugenia. Eu não fazia ideia. Nunca pensei que as coisas tinham evoluído tão depressa. Não fazia ideia. – repeti, sem saber bem o que dizer.
O desfecho era inevitável e tinha-se precipitado muito. Estava convencido (agora reconheço que erradamente) que esta doença terrível iria avançar muito devagar e que a idade avançada do meu pai iria protelar e retardar os efeitos nefastos da doença. Infelizmente, não tinha sido assim. O vigor do meu pai tinha acabado por promover uma sucessão mais rápida das células e acelerando uma progressão natural que, numa pessoa da sua idade levaria, certamente muito mais tempo a evoluir.
De repente fui invadido por uma sensação de tristeza. Era como se, subitamente, tivesse percebido no meu íntimo que iria deixar de ter para sempre a presença do meu pai. Se haveria hora de o perdoar, de nos perdoar por todas as diferenças que tinham havido entre nós, era aquela. Não iria ter muito mais oportunidades.
- Muito obrigado. Amanhã vou ver se consigo encontrar o médico para lhe falar pessoalmente. Infelizmente as notícias são as piores, mas estou certo que a sua presença aqui tem aliviado muito o sofrimento do meu pai. Vou ver se descanso um pouco. Até amanhã, D. Eugénia.
- Até amanhã. Uma boa noite. Se precisar de alguma coisa, faça o favor de dizer.
. Sim, direi. Fique descansada. Boa noite.
- Boa noite.
Saí da sala e dirigi-me para o andar superior, na direcção do meu quarto, mas, ao passar pela porta do quarto do meu pai, fui invadido por um sentimento mais forte que todos os meus rancores e remorsos. Entrei sem fazer qualquer ruído, abeirei-me da cama do meu pai e fiquei a olhá-lo, em silêncio. Senti uma súbita vontade de o abraçar. Recordei os abraços que lhe dera em criança. Em vez disso fiquei ali, a olhá-lo. Os olhos, subitamente, humedeceram-se-me. Ele dormia num sono muito pouco tranquilo. De vez em quando tinha um esgar que me atreveria a dizer que aparentava dor, quando respirava ouvia-se-lhe uma farfalheira, sinal de que os brônquios estariam também inflamados, pensei. Senti um misto de arrependimento, perda e impotência. Saí dali e fui cambaleante até à cama, onde afundei o rosto na almofada. Um turbilhão de pensamentos invadia-me, atropelando-se. Não sabia bem como lidar com tudo aquilo, mas a experiência tinha-me ensinado que o tempo se encarregaria de colocar tudo no devido lugar.
Acabei por sucumbir ao cansaço e adormecer, sem sequer vestir o pijama que tinha trazido. Os primeiros raios de sol encontraram-me vestido sobre a cama, estremunhado, sob um cobertor meio dobrado. Aproveitei o facto de não ter fechado as persianas e decidi levantar-me. A ideia de testemunhar o nascer do sol, em toda a sua força e magnitude no cume do monte que ladeava a aldeia pareceu-me uma natural fonte de energia, de que iria necessitar. Tentando não fazer barulho para não despertar ninguém, atravessei o corredor, entrei na casa de banho e tomei um duche muito rápido. A água não estava propriamente quente, mas estava suportável. A D. Eugénia devia ter deixado o esquentador ligado na véspera.
- Boa lembrança, pensei.
Vesti uma t-shirt e umas calças de jogging e uma camisola de algodão, calcei os ténis que tinha trazido e desci as escadas, tentando fazer o menos barulho possível. A porta do quarto do meu pai estava entreaberta. Reparei que ainda dormia, possivelmente sedado por todos os medicamentos que tinha de suportar.
Ainda era bastante cedo, por isso toda a casa estava mergulhada num silêncio apenas quebrado pelo balancear do pêndulo do grande relógio da sala. Tentando não fazer qualquer ruído, abri a porta das traseiras e saí para a gélida humidade da manhã… iria surpreender o nascer-do-sol no meu lugar preferido, mas até lá tinha uma boa corrida pela frente.
A aldeia estendia-se por duas partes distintas, a Póvoa de Baixo, onde vivia a maior parte dos poucos aldeões e onde me encontrava, e no final de um caminho empedrado que subia serpenteando pela colina ficava a Póvoa de Cima, com algumas casas agora quase todas devolutas e as ruínas de um castelo medieval sempre envolto em bruma, o que lhe conferia um ambiente de misteriosa magia, um portal para eras passadas. Dentro do castelo uma pequena capela mantinha algum aprumo, provavelmente por continuar a ser o término da procissão anual que em Agosto enchia a aldeia de vida; em frente, um pelourinho era testemunho da justiça do passado. Trepando ao ponto mais alto do que restava das muralhas, obtinha-se uma vista inigualável por toda a paisagem em redor e o olhar, que ficava desempedido até à linha do horizonte, era espectador previlegiado da quotidiana chegada do sol.
Ao longe, sob a fraca luminosidade do amanhecer, podia ver-se um velho pastor que levava as suas ovelhas para as pastagens... imagem bucólica propícia a reflexões profundas. O que significava para mim próprio, o meu gesto da noite anterior? Aparentemente o meu inconsciente havia decidido sobrepôr-se a todo o meu rancor e preconceito, e demonstrar todo o amor que no fundo ainda sentia pelo meu pai. De certo modo senti-me aliviado por ele estar a dormir ontem à noite, quando o fui visitar. Ajudava-me a tentar perceber em que ponto me encontrava, no meu processo de reconciliação com o meu pai e com o nosso passado, algo que pelo menos eu já tinha decidido tentar.
Tons violeta, que aos poucos se tornavam alaranjados executavam no céu uma sinfonia de silêncios e anunciavam os primeiros raios de sol, quentes e reconfortantes, decididamente bem-vindos… Aqui e ali galos cumpriam o seu canto matinal, chamando todos na aldeia para os seus afazeres. Todos os que não estivessem deitados numa cama à espera da morte. Após uns minutos levantei-me e decidi voltar para a casa de meu pai. Enquanto percorria as ruas da aldeia, tentei reconhecer a maioria dos detalhes, da cal esmorecida das paredes, dos telhados toscos, a precisar de restauro, das ruelas antigas com um piso muito irregular que serpenteavam pela aldeia, todos indo desembocar no que apelidavam de Rossio.
Recordei-me dum dia, pouco depois de nos termos mudado para Lisboa, em que a minha mãe me terá dito:
- Amanhã vou ao Rossio. Queres vir comigo?
Aquela pergunta tomara-me de surpresa. Ao Rossio! Pensei. Claro que imaginei logo o Rossio da minha aldeia. O coreto, no centro da praça, sempre vazio, excepto aos domingos depois da missa ou à tardinha, nas tardes estivais, em que as mulheres se sentavam nos bancos corridos situados na praça em frente da igreja quando a sombra invadia o terreiro, para fugir ao calor tórrido que assolava as casas da aldeia, baixas e com muito pouco isolamento térmico. Ah, exceptuando Agosto, claro. Agosto era o mês mais divertido. A terra, pacata nos restantes onze meses do ano, era invadida pela sua gente que tinha partido em tempos, em busca duma vida mais fácil e mais prometedora. A cor e a vida que assolavam todos os recantos da terra eram inesquecíveis. Era assim que imaginava Lisboa. Cheia de pessoas, apressadas, nos seus afazeres diários, jovens barulhentos, descontraídos, com as suas roupas modernas e arrojadas, envolvidos nos namoros de férias. O bulício, o trânsito que triplicava ou quadruplicava quase da noite para o dia. Lisboa tinha de ser assim, pensava.
- Claro, mãe. – retorqui - Vamos! Não pude deixar de sorrir, feliz. Para mim só existia o Rossio da minha aldeia. Estranhei, por isso, o facto de a minha mãe se referir a tão longa viagem com aparente ligeireza e falta de preparos. Estava desejoso por rever os rostos da minha aldeia e dos amigos que lá deixara, ansioso por lhes contar todas as novidades, tudo o que já tinha visto em Lisboa. Os meus melhores amigos! Mal podia esperar.
Estávamos ainda em tempo de férias, portanto acordei bem cedo pela manhã, fingi lavar a cara, passei os dedos pelo cabelo, numa tentativa infrutífera de os pentear e, quando ouvi:
- Fernando! Vamos? Estás pronto?
- Estou pronto, mãe.
A minha mãe estranhou tal prontidão.
- Muito bem. Não é costume seres assim tão rápido. Estou a gostar de ver. Devem ser os novos ares de Lisboa.
Pegou-me pela mão. Descemos as escadas do segundo andar, percorremos uns cem metros da rua movimentada que começava a conhecer cada vez melhor, parámos na paragem de autocarro que já me era familiar.
- Vamos de autocarro, mãe? - indaguei.
- Claro, filho. É muito longe para irmos a pé. E não vale a pena apanhar o metro porque o 46 pára no Rossio.
Volvidos alguns minutos, lá chegou o autocarro esperado. Era um veículo pintado de verde-escuro, imponente, estreito e quase tão alto como comprido com fiadas de janelas em dois andares. A entrada era ao lado de uma espécie de cubículo onde seguia o condutor. Entrou a minha mãe, à minha frente. Subimos ao andar superior, e fomo-nos sentar lá atrás. Estávamos sentados numa espécie de balcão ambulante sobre a cidade. Passados uns minutos lá se levantou o cobrador que foi ter connosco.
- Vamos para o Rossio, por favor.
- Que idade tem o menino? – ouvi.
- Tem seis anos.
- Então é só um bilhete e meio. São 2$00, por favor.
- Ora aqui tem.
O cobrador fez uma estranha combinação de números numa máquina que tinha a tiracolo, puxou uma pequena alavanca lateral e vi sair dois bilhetes pequenos quadrangulares, de papel, que entregou à minha mãe.
Eu, claro, calado que nem um rato. Tinha ouvido da minha mãe repetidamente:
- Se te perguntarem a idade, não te esqueças que tens seis anos.
- Mas…. Ó mãe, eu já tenho sete.
- Não interessa, nos transportes ainda tens seis. Assim ainda não pagas bilhete de adulto. E não dizes nada. Vais ter muito tempo para pagar, se Deus quiser.
Apesar de achar uma tremenda injustiça, ter de me fazer passar por seis anos quando na realidade já tinha sete (e uns sete muito maduros, assim pensava) lá percebia mais ou menos a ideia da minha mãe.
Nessa altura vivíamos num dos muitos bairros periféricos de Lisboa e uma viagem destas permitia-nos presenciar vários modos de habitar uma grande cidade. Era fascinante e para mim revelador a progressão crescente de ruas e casas térreas. Aqui e ali pequenas lojas de comércio tradicional, mercearias ou lugares como lhes chamava a minha mãe quando me pedia que lá fosse e eu munido de um frasco vazio olhava atentamente enquanto o Sr. Zeca o enchia com azeite que escorria de um grande depósito graduado, como se de gasolina se tratasse. – Meio litro bem medido, menino Nandinho!
Mas aos poucos as estreitas ruas de poucas lojas passavam primeiro a ruas mais largas e prédios de poucos andares com outro tipo de comércio e indústria e finalmente amplas avenidas com prédios altos de ambos os lados com lojas e filiais de bancos em toda a sua extensão.
Os meus olhos não podiam abrir-se mais de espanto… as pessoas lá em baixo nos passeios pareciam mais pequenas do que eram na realidade. Muitas delas estavam vestidas como se fosse domingo e algumas, homens e mulheres usavam bonitos chapéus. Por vezes um ou outro homem levava um jornal dobrado debaixo do braço, ao invés de o usar para embrulhar qualquer coisa como era costume lá em casa fazermos com os jornais.
Passado algum tempo, que me pareceu imenso (mas não tanto como seria necessário para viajarmos até à minha aldeia) o autocarro entrou numa grande praça com uma fonte bem no meio, à volta da qual se espalhavam bancas de floristas, cheias de flores de imensas cores e aromas. Ainda antes do autocarro parar a minha mãe pegou-me na mão e levantou-se.
– Vamos descer, saímos nesta paragem, Fernando!
– Saímos nesta paragem? Não estava a perceber. Então a ideia não era irmos até ao Rossio? Olhei para a minha mãe, espantado, mas percebi que ela não estava na disposição de entabular conversa alguma. Tinha-me pegado pela mão e com a outra segurava na carteira, enquanto se agarrava ao corrimão para iniciar a descida. Descemos as escadas íngremes, eu quase tropecei, porque os degraus eram altos que se fartavam e quando chegámos à plataforma, pelo safanão, percebi que tínhamos acabado de parar. As portas abriram-se e lá fomos nós. Nós e mais uma série de pessoas. Ao que parecia aquela paragem era muito popular. Logo fomos como que engolidos pelo bulício e movimento imparável duma cidade em movimento. Ao descermos para o passeio tive de me desviar dum senhor que corria para um autocarro cuja paragem era mesmo atrás da nossa, ao que parecia. Os senhores e as senhoras andavam muito apressados e os poucos meninos que os acompanhavam tinham de correr, ofegantes, pelas mãos das mães ou amas, já que não havia tempo nem disposição para grandes conversas. Assim foi. Começámos a andar, num passo estugado. Eu esforçava-me verdadeiramente por acompanhar. A minha mãe de olhar determinado, ao chegar ao final da rua, apenas disse:
– Vamos atravessar!
E lá atravessámos para a parte interior daquela praça que eu avistara da janela do autocarro. As floristas, de avental preto, todas sorridentes, algo anafadas tentavam conquistar o interesse da próxima cliente, apregoando:
– Rosas! Cravos a cinco tostões a dúzia! É comprar, minhas senhoras, é comprar!
Os pombos atravessavam a praça, ao mesmo tempo que iam comendo os pedaços de pão que uma senhora, já idosa, encostada à estátua central que havia na praça, lhes atirava. Algumas pessoas atravessavam a praça, aparentemente sem reparar nos pombos que esvoaçavam em redor da senhora. O que achei mais curioso, de tudo aquilo, foi o movimento contínuo, as pessoas, os autocarros, os carros, tudo parecia correr sem parar.
Até que ouvi a minha mãe:
– Já que viemos ao Rossio, podíamos ir tomar um cafezinho à Suíça, o que é que tu achas?
– Rossio? - Pensei. - Rossio? Então este é que é o Rossio? Não sabia bem o que pensar. Mas aquele não era nem de longe nem de perto, o Rossio da minha aldeia.
– Ó mãe, mas eu pensava que íamos ao Rossio. Lá, ao pé de casa!
A minha mãe olhou-me e vi um sorriso a desenhar-se na sua cara linda.
– Ó, meu querido, não é o Rossio da nossa aldeia. É este. Nem tínhamos tempo de ir até à nossa aldeia. Já viste como estamos longe? Não me digas que tu imaginavas…. Por isso é que estavas pronto tão cedinho! Eu bem estranhei, mas nunca pensei…. E começou a rir, alto e a bom som. (Como eram engraçadas as gargalhadas da minha mãe.) Deixa, que o teu pai há-de ouvir esta. Ó, Fernandinho, não. Era a este Rossio que me referia.
O meu desapontamento cedo se transformou em curiosidade e espanto. Apesar de desejar do fundo do coração estar no Rossio da minha aldeia, aquele Rossio era também assaz curioso.
– Pois…. Eu não sabia.
– Claro. Como havias de saber? Mas não tem importância. Vais conhecer este Rossio. Olha, vamos até à Suíça. A mãe compra-te um bolo muito bom que lá fazem. Uma noz. Já comeste alguma vez?
– Noz? Não, mãe. Tirando as nozes normais, não sei o que é.
– É um daqueles doces muito doces, como tu gostas. Tem assim um formato duma noz, só que tem doce de ovos por dentro, uma noz em cima e depois caramelo à volta. Já vais ver. Tenho a certeza que vais gostar. Podia ser que já tivesses provado em casa dum amigo teu. E a mãe aproveita e bebe um café.
Cá fora perfilavam-se uma série de mesas e cadeiras, todas viradas para a tal praça movimentada. Mas não parámos. Aparentemente haveria mesas também lá dentro. Entrei com a minha mãe. A confusão era grande. Empregados a gritar. Duas bicas! Uma bola para aqui! Clientes, muitos clientes a passar e várias pessoas a comer e a beber ao balcão. A minha mãe, esperou, pacientemente, que a senhora que estava à frente dela acabasse de pagar e, chegando-se ao balcão, disse:
– Era uma bica, se faz favor, e uma noz para o menino.
– Com certeza. A bica é escaldada?
– Sim, se faz favor.
Ainda me lembro hoje do sabor daquela noz. Demorei-me a lamber a cobertura caramelizada que a envolvia lentamente para poder prolongar aquele sabor doce na boca. Quando a minha mãe terminou o café e pagou, decidiu:
- Vais a comer na rua. Pode ser? É que não podemos ficar aqui a manhã toda.
Olhou para mim e sorriu. Tinha um sorriso muito doce e uns olhos que pareciam sorrir também, tal a franqueza que transpareciam. Deu-me a mão e dirigimo-nos para a porta. Mal tínhamos saído, tivemos de virar logo à esquerda no sentido das inúmeras ruas de comércio que desembocavam no Rossio. Foi então que choquei com um senhor muito alto que passava nesse momento. Claro que não me vira, eu era quase insignificante perto dele. Mas o pior foi que o choque me fez largar a noz com que me deliciava. Nem queria acreditar! O doce que a minha mãe tanto recomendara estava espalhado na calçada. Olhei para o chão, desolado, como se o mundo fosse terminar naquele instante. A minha mãe, ao aperceber-se da minha paragem repentina, olhou para trás e exclamou, ao ver-me inconsolável.
- Oh, meu querido. Não te preocupes. Da próxima vez que viermos ao Rossio, prometo que te compro outra noz.
Mas eu não queria a noz da próxima vez. Queria aquela. Para ela aquele assunto tinha terminado ali. Mas eu estava inconsolável.
- Nunca mais! - pensei eu. Nunca mais ando na rua sem proteger bem o que ando a comer! Esta gente em Lisboa é tão descuidada….
A minha primeira experiência na “Suíça” foi assim. Mais tarde percebi que era um local emblemático da cidade, por onde terão passado muitas gerações de lisboetas.
Afinal, nesse dia, comecei a apreciar este novo Rossio mais do que aquele que até então conhecia, deixei-me enfeitiçar pelo movimento das pessoas, pelos sons e cheiros de um cidade grande.
Os passos apressados da minha mãe obrigavam-me a quase ter de correr para a acompanhar. Ela seguia, determinada e decidida, no meio de pessoas que, aparentemente, pensavam nas suas vidas ou então não pensavam em nada. Tinham um olhar vazio. Algumas tinham mesmo um ar estranho. Por vezes distraía-me a olhá-las, mas logo um puxão mais decidido no braço me recordava que tinha de manter aquele ritmo apressado. Recordo-me do assombro com que vi, pela primeira vez, no meio das inúmeras montras, cada uma exibindo uma multiplicidade de cores e de formas, uma montra em particular. Aquela não era uma montra qualquer, não senhor. Aquela era especial. Estava cheia de brinquedos das mais variadas formas e feitios, cada um mais especial e luzidio que o anterior. E no meio de todos os tesouros estava uma fila de caixinhas com uns carros lá dentro como só tinha visto nas revistas que por vezes encontrava em casa da minha tia Bela. Eram umas caixinhas de cartão vermelho e lá dentro encontravam-se as réplicas dos carros verdadeiros. Da “Matchbox”. Nunca tinha visto uma montra assim. Havia comboios, soldadinhos de chumbo, mas aqueles carros eram o meu encanto.
A minha mãe percebeu, pela forma como a minha cara se tinha iluminado, o meu estado de transe. Parou, pacientemente, e deixou-me estar ali, embevecido, a admirar todas aquelas relíquias. Eu estava no céu.
- Pode ser que um dia, se te portares bem, recebas um carrinho daqueles.
Nem queria acreditar no que a minha mãe acabara de dizer. Eu, com um carrinho daqueles? Mas se eram tão caros…
- Oh, mãe, a sério? Era a coisa que mais gostava no mundo!
- Vamos Fernandinho, é preciso apressarmo-nos para chegarmos ao banco antes de fechar... passamos depois pela retrosaria.
A minha mãe costumava usar uma escala na maneira como chamava por mim, consoante estivesse mais bem-disposta ou menos. Assim, quando me queria chamar com ternura usava Fernandinho ou Nandinho, se era a segunda vez que me chamava e eu demorava a responder ou ela estava impaciente, passava para um seco e curto Fernando; se o nome que ouvisse fosse Fernando José, desde logo sabia que estava em maus-lençóis. Este Fernandinho assim como a promessa velada do carrinho, revelava uma sincera pena pela recente queda da minha guloseima.
- Está bem mamã... vai à frente que eu corro atrás de ti.
- Não sejas tontinho - disse ela - nem pensar que eu te solte a mão no meio desta gente toda, ou desta vez ainda eras tu quem caía no meio do chão.
Circundámos a grande praça para escapar ao trânsito constante de carros, autocarros e motociclos, como se todas as máquinas motorizadas do mundo ali tivessem desembocado, ou pelo menos, assim me parecia na altura.
- Mamã, para onde vai esta gente toda? Parecem formigas tontas.
- Há muitas profissões diferentes Fernando, e algumas obrigam as pessoas a ter de andar de um lado para outro a fazer recados ou a levar encomendas mas agora fica caladinho e vamos.
Eu percebi o sinal de que não obteria resposta a mais nenhuma pergunta naquela manhã, pelo menos até estarmos na fila do balcão do banco e fiquei calado o resto do percurso, de qualquer modo, já começava a ofegar. A minha mãe era uma autêntica papa-léguas, os quilómetros para ela pareciam metros, aqui ou na aldeia e ela seguia o seu caminho sem grande esforço.
Passadas algumas ruas e alguns minutos de espera em vários semáforos para peões, chegámos à porta do banco... um edifício imponente de vários andares com colunas altas e duas esculturas de leões uma de cada lado da entrada. Olhavam para mim com ar de quem já havia escolhido o almoço e os olhos de metal pareciam seguir os meus passos. Respirei fundo quando entrámos para um grande salão onde haviam cadeirões e mesas baixas com revistas e outros papéis, que ocasionalmente as pessoas tiravam e preenchiam antes de se dirigirem a um balcão comprido, onde os entregavam juntamente com dinheiro a homens de camisas brancas e gravatas escuras. Por vezes recebiam dinheiro em troca, em vez de o darem. Era costume haver filas em frente desse balcão e era numa delas que eu e a minha mãe estávamos, logo a seguir a um velhote que cheirava a naftalina e estava agora a ser atendido. Daí a cinco minutos, mais coisa menos coisa chegou a nossa vez e a minha mãe entregou ao empregado um envelope com dinheiro.
- Bom dia, vinha pagar as rendas dos inquilinos do Nº ? da Rua das Furnas, em Sete Rios.
- Muito bem, vou buscar os recibos.
Enquanto esperávamos que ele regressasse a minha mãe olhou para mim e sorriu, de certo modo ela estava agora mais tranquila, como se o facto de transportar o dinheiro das rendas de todos os inquilinos do nosso prédio em todo este percurso a deixasse nervosa. Era isso certamente.
- Pronto, minha senhora, aqui tem os recibos de todos os andares.
- Obrigado, até daqui a um mês.
- Com certeza minha senhora... Próximo!!
Saímos do banco para a rua e evitei olhar directamente para os dois felinos de metal, não fosse dar-se o caso de já terem decidido entre eles qual dos dois me deitava a pata primeiro.
Antes de voltarmos para casa a minha mãe precisava ainda de comprar algumas peças de tecido e botões para um vestido que uma vizinha lhe tinha encomendado, por isso dirigimo-nos para uma das várias retrosarias ali perto, mas agora caminhávamos num passo bem mais calmo.
- Só preciso de ir a duas lojas. São aqui perto. Vamos.
Aquele discurso antecipava o que eu previra. Que íamos ficar horas infindáveis na loja. A minha mãe iria escolher, revirar caixas de botões e tecidos para encontrar exactamente aquele de que estava à procura. Só quando lhe ouvia: - São mesmo esses! Só nessa altura sossegava. Talvez por isso ela tinha sempre tantas clientes. Devia ser por causa do tempo que passava nas lojas a encontrar as coisas certas para elas. E depois era a mesma coisa nas casas dos tecidos. Creio que por ser tão boa cliente, todos se desfaziam em atenções e simpatias para com ela. Ou então era porque ela, só por ser quem era, inspirava toda aquela atenção. Não sei. Só sei que passei muitos dias a repetir aquele ritual.
Como já me conheciam, havia algumas almas que me dedicavam uns minutos:
- Nandinho, como estás crescido! Como vai a escola? A tua irmã?
As perguntas não variavam muito. Eu lá dizia que a escola ia bem. Suspeitava já que o interesse não era totalmente genuíno. Era uma mera conversa de circunstância para libertar a minha mãe da minha presença, de forma a poder escolher o que quisesse com o vagar necessário.
Terminada mais uma provação, ao sairmos da loja, perguntei, ansioso:
- Ó mãe, será que podemos passar outra vez pela loja dos brinquedos? Por favor? (Sabia que ela não resistia àquele olhar desesperado, meigo e muito doce).
- Está bem, é na rua a seguir. Mas não podemos ficar muito tempo, senão perdemos o autocarro.
Não consegui deixar de pensar o quanto era injusto que ela se referisse a este autocarro em concreto, e não aos vários que teriam passado em todo o tempo em que estivemos nas lojas, mas o importante é que poderia voltar a sonhar por alguns minutos que um dia poderia ter algum daqueles maravilhosos brinquedos só para mim, olhá-los era já uma forma de os ter.
- De todas as maneiras tu já passas horas a admirar os bonequinhos de chumbo lá ao pé da nossa casa.
- Oh mãe, mas aqui é tudo mais moderno, lá não há as novidades, só coisas de colecção! O Sr. Severino fica horrorizado cada vez que eu tento mexer nalguma coisa.
- Isso é porque ele gosta daqueles bonequinhos tanto como tu, não lhe leves a mal!
Realmente havia uma grande diferença entre as caixas multicoloridas das bonecas, jogos de construção, comboios eléctricos e pistas de carrinhos destas grandes lojas da baixa e as figurinhas metálicas cuidadosamente alinhadas na cave e na pequena montra da loja mal iluminada da nossa rua. Soldadinhos e cavalos ou viaturas de combate de várias épocas cheios de pormenores. Soldados romanos e napoleónicos, cavaleiros medievais e blindados da 2ª guerra. Ali, naquelas estantes reinava a paz, mesmo que fosse fácil imaginar o tinir das armas, o estrondo dos disparos e explosões e os gritos, quase me sentia a tomar parte das batalhas, tal era o realismo conseguido.
- Sim mãe! Eu sei, acho que ele até já sente a minha falta quando eu não vou lá.
Não obstante a paixão que eu tinha criado por aquela loja com um cavaleiro à porta, estes outros brinquedos, modernos, tinham um fascínio que eu não podia negar. Também aqui era fácil sonhar ser eu o maquinista naquela locomotiva brilhante que entrava veloz por túneis nas montanhas, apitando – Uuuuu, Uuuu, pouca terra, pouca terra...














Fosse por uma certa incapacidade de adaptação à nossa nova realidade, fosse por simples inércia ou preguiça, todos os trabalhos que o meu pai arranjava pouco demoravam a enfastiá-lo e era mais o tempo que estava desocupado do que aquele em que, de facto, trabalhava. Essa era mais uma das diferenças entre os meus pais, pois que a minha mãe possuia uma capacidade de trabalho assombrosa... sempre com um sorriso na face.






Nos anos seguintes à medida que explorava Lisboa mais ou menos livremente fui elegendo os meus recantos e momentos preferidos na cidade, à semelhança daqueles que continuava a ter na minha aldeia. Um miradouro na Penha de França, a Graça, os jardins da Gulbenkian, o zoo, as montras e luzes de Natal na Rua do Carmo e na Avenida da Liberdade.
De certo modo foram tempos de libertação e de conquista da individualidade, tempos em que fui soltando aos poucos as teias que me prendiam à casa da minha família e fui ganhando o meu espaço fora dela, com tudo o que isso me permitia, aprendi a ver-me e a ver aqueles que melhor conhecia com outro olhar, mais distanciado. Coisas de que nunca me tinha apercebido apareciam agora bastante nítidas.
Na aldeia quando era suposto o pai já ter regressado a casa ao fim da tarde após a jornada nos campos sabiamos sempre onde encontrá-lo, bastando para isso procurar na tasquinha do Ti Osvaldo.
- Pai, deixe lá o Sr. Ernesto ganhar, que a mãe tem o jantar pronto – dizia-lhe eu muitas vezes.
Se na aldeia, as peças do dominó ou das damas em cima da mesa, iludiam a verdadeira razão da presença do meu pai nesses locais, aqui na grande cidade, tascas e tasquinhas era coisa que não faltava e nunca sabiamos em qual delas ele estaria. Aqui essa razão saltava à vista e sentia-se pelo olfacto.